quarta-feira, 28 de março de 2012

Inquilinos

Ninguém é responsável pelo funcionamento do mundo.
Nenhum de nós precisa acordar cedo para acender as caldeiras e checar se a
Terra está girando em torno do seu próprio eixo na velocidade apropriada
e em torno do sol, de modo a garantir a correta sucessão das estações.
Como num prédio bem administrado, os serviços básicos do planeta são
providenciados sem que se enxergue o síndico – e sem taxa de administra-
ção. Imagine se coubesse à humanidade, com sua conhecida tendência ao
desleixo e à improvisação, manter a Terra na sua órbita e nos seus horários,
ou se – coroando o mais delirante dos sonhos liberais – sua gerência
fosse entregue a uma empresa privada, com poderes para remanejar os
ventos e suprimir correntes marítimas, encurtar ou alongar dias e noites,
e até mudar de galáxia, conforme as conveniências de mercado, e ainda
por cima sujeita a decisões catastróficas, fraudes e falência.
É verdade que, mesmo sob o atual regime impessoal, o mundo
apresenta falhas na distribuição dos seus benefícios, favorecendo alguns
andares do prédio metafórico e martirizando outros, tudo devido ao que
só pode ser chamado de incompetência administrativa. Mas a respon-
sabilidade não é nossa. A infra-estrutura já estava pronta quando nós
chegamos. Apesar de tentativas como a construção de grandes obras que
afetam o clima e redistribuem as águas, há pouco que podemos fazer
para alterar as regras do seu funcionamento.
Podemos, isto sim, é colaborar na manutenção da Terra. Todos
os argumentos conservacionistas e ambientalistas teriam mais força se
conseguissem nos convencer de que somos inquilinos no mundo. E que
temos as mesmas obrigações de qualquer inquilino, inclusive a de prestar
contas por cada arranhão no fim do contrato. A escatologia cristã deveria
substituir o Salvador que virá pela segunda vez para nos julgar por um
Proprietário que chegará para retomar seu imóvel. E o Juízo Final, por
um cuidadoso inventário em que todos os estragos que fizemos no mundo
seriam contabilizados e cobrados.
– Cadê a floresta que estava aqui? – perguntaria o Proprietário.
– Valia uma fortuna.
E:
– Este rio não está como eu deixei...
E, depois de uma contagem minuciosa:
– Estão faltando cento e dezessete espécies.
A Humanidade poderia tentar negociar. Apontar as benfeitorias – monumen-
tos, parques, áreas férteis onde outrora existiam desertos – para compensar
a devastação. O Proprietário não se impressionaria.
– Para que eu quero o Taj Mahal? Sete Quedas era muito mais bonita.
– E a Catedral de Chartres? Fomos nós que construímos. Aumentou o valor
do terreno em...
– Fiquem com todas as suas catedrais, represas, cidades e shoppings, quero
o mundo como eu o entreguei.
Não precisamos de uma mentalidade ecológica. Precisamos de uma mentali-
dade de locatários. E do terror da indenização.

Do livro:
O Mundo é Bárbaro e o que nós temos a ver com isso
Luis Fernando Veríssimo